terça-feira, 9 de abril de 2019

Direito empresarial (Aula 01, 02, 03 e 04)

CONTRATOS MERCANTIS
No Direito brasileiro, os contratos privados apresentam-se em três categorias distintas, conforme o direito que protege o interesse dos contratantes. São elas:

·        Os contratos civis – que são aqueles celebrados entre partes não profissionais. São disciplinados pelo Código Civil e pela legislação complementar. Como exemplo tem o contrato de doação.

·        Os contratos de consumo – que são aqueles celebrados, de um lado, por profissionais que fornecem produtos ou prestam serviços e, de outro, por consumidores, estão disciplinados pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90 artigos 2º e 3º. Ex.: Contrato de compra e venda nas lojas e magazines, em que se caracteriza o consumo.

·        Os contratos comerciais – são firmados entre empresários ou comerciantes e tem por finalidade a exploração do comércio. Ex.: Compra e venda mercantil e o penhor mercantil. São disciplinados pelo Código Civil e legislação comercial complementar.

Convêm notar que, os contratos comerciais cujas modalidades surgiram após o Código Comercial, serão aplicados os dispositivos de outro contrato de vínculo contratual semelhante. Assim, ao contrato de cartão de crédito, por exemplo, serão aplicados os dispositivos do artigo 120, que tratam das operações de banco.

CONCEITO
Contrato comercial é o ato jurídico por força do qual duas ou mais pessoas acordam, entre si, a constituição ou extinção de um vínculo jurídico-patrimonial, de natureza comercial.

Como a natureza comercial do contrato implica a prática de atos de comércio de forma profissional, objetivando lucro, temos, então, que as partes contratantes são comerciantes ou prestadores de serviços especiais, tais como o transporte de mercadorias e de passageiros.

Por isso mesmo, os contratos comerciais pertencem sempre a natureza dos contratos onerosos, isto é, no comércio não se admitem contratos gratuitos, uma vez que o lucro é o objetivo principal do comerciante.

Existem, entretanto, contratos que são reputados comerciais em razão da matéria objeto do contrato ou, ainda, em razão das pessoas que nela intervêm; são os contratos comerciais por natureza ou por determinação legal, tais como a letra de câmbio, o cheque, os contratos de câmbio, etc., estes contratos são sempre comerciais.

ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO CONTRATO COMERCIAL
Os elementos constitutivos do contrato social compreendem as formalidades essenciais, uma vez que sem a satisfação dessas formalidades os atos jurídicos não são considerados perfeitos. São, pois, condições impostas pelo ordenamento jurídico, e que integram a coisa, não podendo ser dispensadas sob pena de tornar o contrato imperfeito.

Os elementos constitutivos dos contratos comerciais apresentam-se sob duas categorias distintas:
·        Os elementos subjetivos – que compreendem a capacidade das partes contratantes e o acordo ou consentimento recíproco das partes contratantes;

·        Os elementos objetivos – que compreendem o objeto lícito e possível e a forma prescrita e não defesa em lei.

Elementos subjetivos
·        Capacidade das partes contratantes – em Direito Comercial, os requisitos para contratar são os mesmos exigidos para o exercício do comércio.

·        Acordo ou consentimento recíproco das partes contratantes – é a declaração de vontade recíproca dirigida especialmente a alguém, isto é, há um destinatário certo. Esta declaração deve apresentar-se de forma inequívoca no contrato, livre de coação e isenta de dolo, fraude, ou erro.

O consentimento pode apresentar-se de forma expressa ou tácita.
Convém lembrar que o acordo deve apresentar-se livre de vício de consentimento (dolo, fraude, simulação).

Elementos objetivos
·        Objeto lícito e possível e determinado – o objeto do contrato tem que estar de acordo com a Lei, ou seja, o fim visado pelas partes contratantes não pode contrariar a lei, à moral e aos bons costumes, isto é, não deve ofender à ordem pública. Além disso, o objeto deve ser possível e determinado.

·        Forma prescrita ou não defesa em lei – se a lei exige determinada forma para a validade de um contrato, essa forma deverá ser estritamente observada, sem o que não caracteriza uma verdadeira vinculação das partes.

PRINCÍPIOS GERAIS
Os princípios gerais que incidem no contrato comercial são três:
·        O princípio da autonomia da vontade – que significa a liberdade das partes em estipular, no contrato, o que lhes convier;

·        O princípio da supremacia da ordem pública – que significa uma limitação da autonomia da vontade, sujeitando-a à obrigatoriedade da lei, aos princípios da moral e à ordem pública. Assim, temos que o princípio da autonomia da vontade é relativo, pois deve-se considerar que está sujeito 1à observância da lei, da moral e da ordem pública;

·        O princípio da obrigatoriedade do contrato – por este princípio, o contrato tem força de lei entre as partes, e o que foi pactuado deve ser cumprido pelas partes; é o princípio de pacta sunt servanda.

CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS EM GERAL
A classificação dos contratos é extremamente importante para identificar as obrigações das partes como para facilitar a interpretação das suas cláusulas. Os contratos em geral, além da classificação apresentada nesta Unidade, também podem ser:

·        Consensuais – são aqueles formados pelo simples consentimento das partes, isto é, formados de maneira simples pela proposta e aceitação. Exemplo: o contrato de compra e venda mercantil.
·        Reais – são aqueles para cuja sua formação, além do consentimento, é necessário que uma coisa seja entregue por uma parte à outra. Exemplo: o contrato de depósito.
·        Unilaterais – são aqueles que geram obrigações apenas para uma das partes. Exemplo: o contrato de mútuo mercantil.
·        Bilaterais ou sinalagmáticos – são aqueles que geram obrigações para ambas as partes. Exemplo: o contrato de compra e venda mercantil. A bilateralidade refere-se às obrigações e não ao consentimento.
·        Gratuitos – são aqueles que geram vantagens apenas para uma das partes. Em comércio não existe contrato gratuito, uma vez que o lucro é o seu objetivo primeiro. Exemplo: o contrato de mandato não mercantil.
·        Onerosos – são aqueles que geram vantagens para ambas as partes contratantes. Estas vantagens devem ser equilibradas, havendo proporcionalidade nos direitos e nas obrigações entre ambas as partes. Exemplo: o contrato de mandato mercantil.
·        Comutativos – são os contratos onerosos em que as prestações são certas. Exemplo: contrato de compra e venda de coisa certa.
·        Aleatórios – são os contratos onerosos em que uma prestação pode deixar de existir em virtude de um evento futuro e incerto. Exemplo: o contrato de seguro.
·        Solenes e formais – são os contratos que estão sujeitos a determinadas formalidades para se aperfeiçoarem, isto é, são aqueles para os quais a lei prescreve forma. Exemplo: o contrato de seguro que só vale quando escrito.
·        Não solenes ou não formais – são os contratos que, para sua formação, não se exige qualquer requisito especial. A sua forma é livre, isto é, a lei não prevê forma. Exemplo: a compra e venda mercantil.
·        Principais – são aqueles cuja existência independe de outro contrato, isto é, por si só. Exemplo: o contrato de mútuo mercantil.
·        Acessórios – são os contratos cuja existência depende de um outro contrato principal; desaparecendo o contrato principal, desaparece também o acessório, isto é, segue o principal. Exemplo: o contrato de penhor mercantil.
·        Instantâneo – são os contratos em que a prestação pode ser efetivada num momento determinado, isto é, a execução da prestação pode ser imediata ou deferida para um momento futuro. Exemplo: o contrato de compra e venda mercantil.
·        De duração – são os contratos em que a execução da prestação é de forma continuada. São os contratos de execução continuada. Exemplo: o contrato de fornecimento de mercadorias.
·        Típicos ou nominados – são aqueles que obedecem a determinadas regras jurídicas e que possuem denominação legal. São aqueles contratos previstosem lei. Exemplo: o contrato de compra e venda mercantil.
·        Atípicos ou inomimados – são os contratos que não estão previstos em lei. Exemplo: o contrato de factoring.
·        Pessoais – são aqueles celebrados levando-se em consideração as pessoas com quem se contrata, uma vez que são elas que deverão cumprir a obrigação. Exemplo: o contrato de mão-de-obra determinada e o contrato de trabalho, em relação ao empregado.
·        Impessoais – são os contratos em que não se consideram as pessoas com quem se contrata, uma vez que é indiferente quem cumpre a obrigação. Exemplo: o contrato de trabalho em relação ao empregador.
·        Paritários – são aqueles em que as partes contratantes se apresentam no mesmo nível de igualdade, escolhendo as partes mutuamente e debatendo livremente as cláusulas contratuais. Exemplo: o contrato de compra e venda mercantil.
·        De adesão – são aqueles em que uma das partes reserva para si o monopólio, impondo as cláusulas contratuais, em bloco; a outra parte apenas adere ao que está estipulado. Exemplo: o contrato de fornecimento de água, o contrato de seguro, etc.
·        Necessários – são os contratos em que é impeditiva a obrigação de contratar, sendo facultativa ou não a escolha da parte. Exemplo: o contrato de seguro obrigatório de veículos; sem escolha facultativa, o contrato de seguros de acidentes de trabalho, que só pode ser firmado com o INSS.
·        Autorizados – são os contratos que, para serem firmados, dependem de licença dos poderes públicos. Exemplo: o contrato de compra e venda de medicamentos.   

É bom ressaltar que em um mesmo contrato existe a convivência de várias classificações, que o caracterizam, diferenciando de outros contratos, justamente, pela incidência diferenciada de modalidades. Dessa forma, um contrato de compra e venda mercantil poderá ser consensual, bilateral, oneroso, comutativo, não solene, principal, instantâneo, típico, paritário, etc.

Função Social do Contrato – Art. 421

Para a compreensão da função social do contrato, parte-se da premissa de que a função social do contrato, sem qualquer adjetivação, é a transferência de riquezas, que tem por base uma necessária colaboração das partes que, sem contrato, não conseguiriam suprir suas necessidades e desenvolver as atividades pessoais e profissionais.

Giselda Martins Fernandes Novaes Hironaka[1] explica que as idéias dos limites impostos à liberdade contratual (e não liberdade de contratar) resultam do próprio fenômeno da publicização do direito privado, por meio da interferência estatal nas relações entre particulares. Assim, dispõe o Código Civil em seu art. 421:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

A função social do contrato significa que nem sempre os contratantes poderão livremente regulamentar sua vontade, porquanto representa elemento de limitação do conteúdo do contrato. Dois são os desdobramentos da função social: na relação entre as partes contratantes e na relação contratantes com terceiros.

No tocante à figura dos próprios contratantes, estamos diante da idéia de justiça interna do contrato. Assim, as cláusulas iníquas ou abusivas, que, em última análise, levam um dos contratantes à ruína, atentam contra a função social do pacto, e, portanto, podem ser consideradas nulas pelo juiz. Tais cláusulas desvirtuam a idéia do contrato como forma de circulação de riquezas e de obtenção de fins comuns, e o transformam em meio de falência de um dos contratantes. O equilíbrio, portanto, faz parte da idéia de função social do contrato.

A cláusula que prevê, em contrato de sociedade empresarial, pertencer todo o lucro a apenas um dos contratantes e os prejuízos a outro é considerada abusiva por ferir a função do contrato de sociedade (art. 1008, CC). Em idêntico sentido, cite-se o contrato de compra e venda que submete o preço ao arbítrio exclusivo do vendedor.

O código Civil de 2002 evidencia a questão da função social do contrato, quando no artigo 473, parágrafo único especifica:

Art. 473 (....)
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeitos depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

Este dispositivo confere ao juiz o poder de declarar ineficaz a resilição unilateral, de modo que até que haja a efetiva recuperação dos investimentos realizados em decorrência do contrato, o contratante que arcou com tais despesas consideráveis não pode ver o contrato denunciado e resilido (extinto).

Outros dispositivos do código civil de 2022 refletem o princípio social do contrato. No contrato de agência e distribuição por prazo indeterminado, o prazo para a denúncia do contrato é de 90 dias, desde que transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente (art. 720, CC). Também, em razão da função social do contrato de corretagem, mesmo denunciado o contrato, se o negócio se realizar posteriormente, em razão da corretagem, esta será devida ao corretor (art. 726, CC). O cliente pode dispensar o corretor, findo o contrato, mas continuará com ele obrigado.

Já com referência a interferência de terceiros (não participantes da avença) Eduardo Sens dos Santos[2]explica que o contrato não pode ser mais entendido como mera relação individual (que produz apenas efeitos inter partes). Devem-se considerar os seus efeitos sociais, econômicos, ambientais e até mesmo culturais. Seria a função do contrato frente à sociedade e, por isso, a avença deve atender ao bem comum e não pode ser fonte de prejuízos para a sociedade. 

Boa-fé objetiva – art. 422

Adalberto Pasqualotto[3] ensina que:

“do ponto de vista objetivo, a boa-fé assume a feição de uma regra de conduta. É a chamada boa-fé lealdade. É a Treu und Glaubem do direito alemão. Segundo Larenz, cada um deve guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar a confiança ou abusar da confiança alheia”.

Segundo Mário Júlio de Almeida costa, a boa-fé objetiva ou em sentido objetivo, como norma de conduta, pode ser chamada de boa-fé em sentido ético, e se encontra presente no art. 272 do Código Civil português.

“Art. 272. Quem negocia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar á outra parte”.

Não se trata mais de análise da boa-fé subjetiva, mas de caráter normativo, como verdadeira regra de conduta daquele que contrata.

Silvio de Salvo Venosa[4] explica que para a análise da boa-fé objetiva, o intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, no caso concreto. É um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.

As noções de agir corretamente com o próximo, ou seja, de honrar a palavra dada, de não causar prejuízos desnecessários a outrem, de cooperação para com o outro contratante, refletem o conceito de norma ética de conduta, segundo os padrões do homem médio.

Trata-se de uma norma impositiva de conduta leal, geradora de um dever de correção que domina o tráfego negocial (MARTINS-COSTA, 2003, p. 46).

A partir destas definições, pode-se exemplificar outras formas de boa-fé objetiva nas relações contratuais. Neste parágrafo, apenas mencionamos alguns desdobramentos práticos da questão de maneira assistemática, sendo que em item próprio trataremos da matéria com mais detalhamento. Assim, o dever de informação é traço característico da lealdade contratual. Na venda de determinado objeto, cabe ao vendedor informar ao comprador todas as características do objeto em questão, eventuais defeitos já apresentados, bem como sua periculosidade inerente. Exatamente em razão da boa-fé objetiva, o fabricante de cigarros informa que “fumar faz mal à saúde” e, para os iletrados, utiliza-se de fotografias elucidativas.

A proibição de utilização do contrato com o fito único de causar um prejuízo imotivado ao outro contratante também é decorrência da boa-fé objetiva. Exatamente por isso, determina o Código Civil que aquele que demanda por dívida já paga, por puro espírito de emulação e chicana, fica obrigado a restituir o valor indevidamente cobrado em dobro (art. 940, CC).

Também é corolário da boa-fé objetiva que as expectativas geradas pela atitude de um dos contratantes, mesmo contrariando o texto expresso de contrato, geram efeitos jurídicos. Assim, se o credor habitualmente aceita receber em local diverso daquele previsto no contrato, há uma presunção de renúncia quanto ao local de pagamento (art. 330, CC) e não poderá alegar posteriormente mora do devedor. Valem mais as atitudes das partes que o texto frio do contrato. São comportamentos leais que geram justas expectativas e não podem ser desconsiderados. 

O Código Civil consagra a boa-fé objetiva em seu artigo 422:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua conclusão, os princípios da boa-fé objetiva”.

Notamos que o Código Civil adotou um sistema de cláusulas gerais, pelo qual, conforme ensina Ruy rosado de Aguiar, abandona-se o princípio da tipicidade e fica reforçado o poder revisionista do juiz (in: www.cjf.com.br/revista). A definição de cláusula geral é extraída da lição de Judith Martins-Costa (1998, p. 5).

“São normas jurídicas legisladas incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso concreto, autorizando-o a que estabeleça, de acordo com aquele princípio, a conduta que deveria ter sido adotada no caso. Isso significa certa indefinição quanto à solução da questão, o que tem sido objeto de crítica. É a antiga bipolarização entre a segurança, de um lado, e o anseio de justiça concreta de outro”.  

Com alguns exemplos, notamos que a boa-fé objetiva como norma ética de conduta não se confunde com a noção clássica de boa-fé, ou seja, com a chamada boa-fé subjetiva.

Judith Martins-Costa (1999, p. 411) explica que boa-fé subjetiva denota estado de consciência, ou convencimento individual de obrar em conformidade ao direito. Ela se aplica no campo dos direitos reais e é subjetiva, pois se analisa a intenção do sujeito da relação jurídica. Já a boa-fé objetiva é modelo de conduta social, verdadeiro arquétipo, standart jurídico, segundo o qual cada pessoa deve obrar como um homem com retidão, com probidade, lealdade e honestidade.

A boa-fé subjetiva é chamada de boa-fé-crença, ou também de boa-fé em sentido psicológico e corresponde à Gutten Glauben prevista no BGB (PASQUALOTTO, 1997, p. 111). É a consciência ou ausência desta diante de determinada situação jurídica. É uma qualidade reportada ao sujeito; a lei civil reconhece a locução inversa – má-fé – e consagra-a, associando-lhe efeitos diversos (MENEZES CORDEIRO, 2001, p. 407).

Vários são os exemplos em que estará presente a boa-fé subjetiva do Código Civil. A primeira a ser analisada diz respeito à posse de boa ou de má-fé. Possuidor de boa-fé é aquele que ignora os vícios da violência, clandestinidade ou precariedade que inquinam sua posse. Os vícios estão presentes, mas são por ele desconhecidos. Daí, sua ausência de consciência significa boa-fé subjetiva. Menezes Cordeiro (2001, p. 415) afirma, ao analisar o artigo 1.260/1 do Código Civil português, que haverá boa-fé subjetiva quando o possuidor, ao adquirir ou constituir a posse, ignora que está lesando o direito de outrem.

Se o possuidor está ciente da a violência que inquina a posse, pois ele, utilizando-se de força física, desapossou o dono do imóvel, estamos diante de um possuidor de má-fé, já que tem consciência da situação de fato. Os efeitos da ausência ou não de consciência dos vícios da posse serão diversos, porque o possuidor de boa-fé terá direito à indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias, inclusive com direito de retenção, e o possuidor de má-fé apenas terá direito à indenização, mas não à retenção pelas benfeitorias necessárias. Assim, dispõe o art. 1.219:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis”.  

Na disciplina dos vícios ocultos, o Código Civil, também estabelece efeitos diversos para o alienante de boa ou de má-fé. Se o alienante conhecia o vício oculto ao alienar o bem em questão, não arcará com o pagamento de indenização ao adquirente, suportando este último os prejuízos sofridos. Entretanto, se o alienante tinha consciência de que a coisa continha o defeito e, por isso mesmo, a aliena, sem informar tal fato ao adquirente, age com má-fé e, portanto, deverá arcar com todas as perdas e danos causadas pelo vício. Assim determina o art. 443 do Código Civil.

“Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato”.

Conhecimento ou não são estados psicológicos e revelam a presença de boa-fé subjetiva.

Em matéria de efeitos a serem atribuídos a um casamento nulo ou anulável, estamos diante de boa-fé subjetiva. Assim, será putativo o casamento que, embora nulo ou anulável, produzirá efeitos ao contraente de boa-fé, ou seja, ao contraente que, momento da celebração, não conhecia determinado impedimento matrimonial (previstos no art. 1.521 do Código Civil) ou causa de nulidade relativa (previstas no art. 1.550 do Código Civil). Diante da ausência de consciência do cônjuge o casamento produzirá efeitos para ele, mesmo padecendo de um vício. É a determinação do art. 1.561 do código Civil.

“Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória”.

Já para o cônjuge de má-fé, o casamento não produzirá qualquer efeito. Assim, se alguém casado convola novas núpcias, estará agindo de má-fé, pois tem consciência do impedimento matrimonial e não receberá os efeitos do casamento válido.

Cabe indagar: a boa-fé objetiva representa uma verdadeira novidade para o ordenamento brasileiro? A resposta é não. Podemos afirmar que o Código Civil de 1916 cuidava da boa-fé apenas na sua modalidade subjetiva, nas hipóteses de consciência ou não do sujeito com relação a determinada situação jurídica, conforme já explicado. Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor já adotava a boa-fé objetiva como cláusula geral em seu artigo 4º, inciso III, possibilitando a aplicação do instituto às relações de consumo. 

Existe, então, uma evidente semelhança entre os princípios adotados pelo Código de Defesa do Consumidor e o atual Código Civil, com referência aos contratos.

Funções da boa-fé objetiva
São duas as funções da boa-fé objetiva a serem estudadas: sua função ativa e sua função reativa.

a) Função ativa
A função ativa se caracteriza pela existência de deveres que não surgem do acordo de vontades das partes, pois dele independem. São deveres de decorrem diretamente da boa-fé e, portanto, não necessitam de previsão contratual expressa. Surgem, então, os chamados deveres laterais, anexos, secundários ou acessórios.

A doutrina revela-se dissonante quanto à terminologia, mas optamos pela expressão deveres anexos ou laterais e não pela idéia de deveres acessórios. Isso porque a idéia de acessoriedade não se aplica a tais deveres, pois não são menores e nem menos importantes que os deveres primários e não seguem os deveres principais. Em determinadas situações, os deveres principais ainda não existem, pois estamos na fase pré-contratual, mas os deveres laterais já devem ser cumpridos (cupla in contrahendo). Em outras situações, os deveres primários já foram adimplidos e o contrato, extinto, mas os deveres laterais persistem (responsabilidade post pactum finitum). Essa denominação também é adotada por Mário Júlio de Almeida Costa (2001, p. 66), que informa ser aquela predominantemente utilizada pela doutrina e por Judith Martins-Costa (2003, p. 35).

Os deveres laterais complementam os deveres principais ou primários. Isso porque sob a ótica de Clovis do Couto e Silva, a obrigação é um processo dinâmico, pelo qual a obrigação nasce para ser cumprida. Assim, cabe aos contratantes a realização de determinados atos (deveres principais e anexos) para que o0 objetivo almejado seja alcançado e a obrigação, extinta. Não há nos contratantes uma posição de litígio, de antagonismo, mas de cooperação e harmonia para que se atinja o fim pretendido. Assim, fica justificada a existência de deveres laterais não previstos em contrato, mas que devem ser igualmente cumpridos, isto é, “o princípio da boa-fé objetiva importa no reconhecimento de um direito a cumprir em favor do titular passivo da obrigação”.

Assim, em um contrato de compra e venda, por exemplo, é dever principal do comprador efetuar o pagamento do preço. Tais elementos representam a alma da relação contratual, pois definem o tipo do contrato, por exemplo: compra e venda se configura pela presença dos elementos, res, pretium et consensus. 

Menezes Cordeiro (2001, p. 591) explica que o crédito importa uma situação relativa, no sentido próprio de correspondência entre um direito e um dever contrapostos, e o cerne da obrigação é a conduta humana do devedor a ser desenvolvida em favor do credor. Tal conduta trata-se de prestação principal.

Clóvis do Couto e Silva esclarece não bastar que a parte contratante cumpra a prestação principal: “as partes devem observar outras condutas que também se constituem em deveres” (PASQUALOTTO, 1997, p. 113). E quais seriam essas condutas?

São os deveres que visam proteger a contraparte de risco de danos na sua pessoa e no seu patrimônio, sendo denominados, segundo Judith Martins-Costa (2003, p. 38), deveres de proteção. Evidentemente, como bem pondera a autora, impossível seria a listagem de um rol taxativo que esgotasse todos os deveres laterais, mas, tomando por base a doutrina e a jurisprudência pátrias, poderíamos mencionar alguns importantes deveres, segundo a obra de Adalberto Pasqualotto: de segurança, de lealdade, de informação e de cooperação.

É importante frisar que se trata de deveres laterais. E, em sendo um dever, não estamos diante de mera faculdade no tocante ao seu cumprimento pelas partes. São deveres tão relevantes quanto os principais ou primários e seu descumprimento acarretará os ônus do inadimplemento contratual com todas as suas conseqüências. Outra não foi a conclusão da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários realizada de 11 a 13 de setembro de 2002 e seu enunciado 24.

“Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no artigo 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.”

Não se trata de faculdade, o contratante que descumpre um dever lateral arcará com a indenização de todos os prejuízos sofridos pelo outro contratante, nos exatos termos do art. 389 do Código Civil:

“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”

a.1) Dever de segurança 
Cabe aos contratantes garantir a integridade dos bens e dos direitos do outro contratante, em todas as circunstâncias próprias do vínculo que possam oferecer algum perigo (PASQUALOTTO, 1997, p. 114).

Vários são os exemplos na vida cotidiana que indicam tal dever. Em um jardim zoológico, as jaulas dos animais devem ser projetadas de maneira que a vida e a saúde dos visitantes não sejam expostas a riscos. Assim, não basta a colocação de grades que impeçam o leão de escapar, mas é necessário que haja uma distância suficiente para que se impossibilite que um visitante consiga colocar as suas mãos por entre as grades.

Os shopping centers e os supermercados que, quando lavam o assoalho, colocam placas de aviso no chão com os dizeres “Cuidado: Piso Escorregadio” não o fazem apenas porque querem, mas por exigência de um dever de segurança como decorrência da boa-fé objetiva. Em se tratando se relação de consumo, o dever de segurança vem objetivado no art. 6º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.

As empresas concessionárias de energia, que, por meio de desenhos (geralmente caveiras e ossos), alertam as pessoas dos perigos de choque e do risco de morte em razão da alta voltagem, cumprem os ditames da boa-fé objetiva. O aviso escrito não basta em razão da existência de grande massa de pessoas analfabetas.

Em determinadas áreas das cidades, sujeitas a alagamento em caso de chuvas, cabe ao dono da loja informar a seus clientes para não estacionarem o carro no local em dias de chuva, razão pela qual se pintam muros com os seguintes dizeres: “Atenção: Área sujeita a alagamento.” Na cidade de São Paulo, no bairro do Morumbi, em frente à sede social do São Paulo Futebol Clube, há tal aviso aposto no muro do clube. Isso porque o dever de segurança não se refere somente às pessoas, mas também a seus bens.

Pasqualotto (1997, p. 114) conta que em determinada cidade alemã, dentro de uma casa de jogos, um jogador de bilhar acertou com o taco a cabeça de outro cliente que jogava carteado no estabelecimento. O dono da casa de jogos foi condenado por não ter disposto as mesas (de bilhar e de carteado) de forma adequada para se evitar o perigo quando as atividades fossem praticadas simultaneamente.

a.2) dever de lealdade
Este dever consiste na premissa de que a parte não deve agir de modo a causar prejuízos imotivados a outra.

Não basta que se cumpra o contrato. Deve-se atentar para o princípio de que as partes devem agir de forma que melhor atenda aos interesses comuns.

Alguns exemplos ilustram a questão. Em um contrato de compra e venda de determinado estabelecimento comercial, concluído o negócio e pago o preço, o vendedor e antigo proprietário do estabelecimento liga para todos os fornecedores informando da venda efetuada e pedindo que estes não entreguem mercadorias para o novo proprietário. Notamos, que neste caso, que há evidente falta de lealdade e o vendedor acaba causando prejuízos imotivados ao comprador por puro espírito de emulação[5].

Em um contrato de empreitada pelo qual o dono da obra se compromete a fornecer os materiais, a chamada empreitada de labor, o empreiteiro não pode agir de maneira negligente, desperdiçando o que lhe é fornecido, já que o prejuízo não será por ele suportado. Faltaria o dever de lealdade decorrente da boa-fé objetiva.

Em idêntico sentido o segurado que, em razão de contratação de seguro e assunção dos riscos por terceiro, passa a dirigir seu carro sem observar os mínimos deveres de atenção e cuidado, na certeza de que não suportará eventuais danos. Nesse caso, sua ação denota que não há preocupação com os ônus que causará ao outro contratante.

Por fim, o advogado falta com o dever de lealdade quando, encerrada a prestação de serviços advocatícios, revela a terceiros detalhes de seu cliente, mormente no campo do direito de família. Com tal atitude, o advogado expõe o cliente a uma situação de embaraço desnecessariamente, razão pela qual comete infração ética (Lei n 8.906/94, “Art. 34. Constitui infração disciplinar: (...) VII – violar, sem causa justa, sigilo profissional”). Este dever independe de previsão contratual, eis que se trata de decorrência direta da boa-fé objetiva.

a.3) Dever de informação
É o dever de comunicar à outra parte fatos relevantes envolvendo o objeto do contrato. Cabe ao contratante detentor da informação ou de determinado conhecimento técnico expor detalhadamente ao outro contratante (que ignora o fato ou não dispõe de informação técnica), antes de firmado o contrato, tudo o que for relevante com relação ao contrato, seu objeto e sua execução.

O dever de informação persiste ainda que a comunicação possa prejudicar o contratante que detém a informação.

Em se tratando de relação de consumo, o Código de Defesa do Consumidor prevê expressamente o dever de informação, em seu art. 6, inciso III, pois determina ser direito do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como os riscos que apresentam. O fornecedor de produtos e serviços conhece aquilo que oferece, pois detém o conhecimento técnico a respeito da produção e de eventuais riscos que podem ser causados pelo bem colocado no mercado. Como o consumidor, na qualidade de tecnicamente vulnerável, desconhece tais informações, é dever do fornecedor informar de maneira clara e completa.

“Claro está que a vulnerabilidade característica do consumidor não é a científica e nem a sócio-econômica, mas sim a técnica. Isso porque o consumidor desconhece tecnicamente o objeto que está adquirindo. Um médico, ao adquirir um computador para seu consultório, certamente não estará objetivando sua transformação para nova venda, mas o seu simples uso. Nesse caso, será considerado destinatário final fático e econômico do bem e preencherá a característica da vulnerabilidade técnica, pois se presume que não tem conhecimento específico sobre o objeto adquirido” (SIMÃO, 2003, p. 34).

O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil também exige que o advogado preste informações completas ao seu cliente antes da propositura de certa demanda, ainda que isso leve o cliente a não efetuar a contratação. Surge um dever qualificado de informar que se desdobra no dever de aconselhar (Código de Ética; “Art. 2º. São deveres do advogado: (...) VII – aconselhar o cliente a não ingressar em aventura jurídica”).

O Código Civil traz interessante regra em relação à empreitada em seu art. 613. Cabe ao empreiteiro, em se tratando de empreitada de lavor, reclamar para com o dono da obra com relação á qualidade e quantidade dos materiais fornecidos para a execução da obra, sob pena de perder a sua retribuição em caso de perecimento da coisa antes da entrega da obra. O empreiteiro é conhecedor de seu ofício e, portanto, sabe avaliar a qualidade do material adquirido pelo dono da obra (que, a princípio, não tem obrigação de possuir tais informações de cunho técnico). Assim, cabe ao empreiteiro o dever de informar a má qualidade do material que está sendo fornecido pelo dono da obra. A lei prevê que, descumprido o dever de informar, haverá perda da retribuição se a coisa perecer.       

a. 4) Dever de cooperação
Por fim há, também, o dever de cooperação, ou seja, a ajuda que uma parte deve prestar a outra para a consecução dos fins do contrato.

Exemplificamos. Não se trata de obrigação do empreiteiro a obtenção da autorização da Prefeitura para o início das obras em determinado imóvel. Entretanto, deve este cooperar para que a autorização seja obtida pelo proprietário, quer seja fornecendo as plantas do imóvel, quer seja dando esclarecimentos técnicos solicitados pelo Poder Público, quer seja adequando o projeto às normas de construção.

Outra hipótese em que se verifica o dever de cooperação ocorre no contrato de compra e venda de imóveis no qual o comprador efetuará um mútuo pelo Sistema Financeiro da Habitação para pagar parte do preço. O vendedor, ciente de que o comprador precisará de vários documentos que serão apresentados ao banco que financiará a compra, apesar de não ser parte no contrato de mútuo, deve cooperar com o comprador, fornecendo as informações necessárias com relação a si e a seu imóvel. Note-se que o êxito da compra, nesse exemplo, dependerá da cooperação do vendedor para que o comprador obtenha financiamento.

A cooperação significa maior chance de conclusão ou de adimplemento do contrato.

b) Função reativa
Analisada a função ativa da boa-fé objetiva, ou seja, os deveres laterais que surgem em decorrência da própria boa-fé, independentemente de sua previsão legal ou contratual, necessário se faz o estudo da boa-fé em sua função reativa, usada como exceção, para a defesa de determinada pessoa que é injustamente atacada por outra.

Em se tratando da função reativa, a boa-fé será a alegação de defesa para rechaçar determinada pretensão injusta, ou, como esclarece Menezes Cordeiro (2001, p. 719), exceção é a situação jurídica pela qual uma pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a efetivação da pretensão correspondente.

b.1) Exceptio doli
Não poderia ser mais claro o conceito de Menezes Cordeiro (2001, p. 720) sobre a exceção do dolo, que é o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor por este ter incorrido em dolo.

O direito não pode privilegiar aquele que age com o intuito de enganar, ludibriar o outro contratante, ainda que tal conduta não se caracterize como vício do consentimento. Em se caracterizando como vício do consentimento e maculando o sinalagma genético do contrato (os romanos chamavam de exceptio doli specialis), o dolo deve ser encarado como causa de nulidade relativa do negócio nos termos do art. 145 do Código Civil.

Entretanto, mesmo que não haja vício do consentimento, a conduta dolosa deve ser entendida como contrária à boa-fé, e o contratante que agiu com dolo nada poderia exigir do outro.   

b.2) Venire contra factum proprium
As atitudes do contratante geram justas expectativas no outro contratante. A linha de conduta assumida não pode ser contrariada pelo próprio agente por meio de um ato posterior (PASQUALOTTO, 1997, p. 124).

Venire contra factum proprium significa o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (MENEZES CORDEIRO, 2001, p. 742). Tem como requisito a existência de dois comportamentos lícitos de uma mesma pessoa, separados por determinado lapso temporal, sendo que o segundo comportamento contraria o primeiro.

O primeiro comportamento é o factum proprium e o segundo ocontraria (vernire contra). Trata-se do exercício inadmissível de posições jurídicas.

O fundamento do venire reside na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé em razão da primeira conduta realizada (ANCONA LOPES, 2001).

MENEZES CORDEIRO, com base na jurisprudência alemã exemplifica esta situação. Um funcionário afirma ao empregador que pretende despedir-ser, mas não o faz, porque o empregador se opõe à demissão e pede a ele que continue seu trabalho. Após um mês, o empregador demite o empregado, alegando estado financeiro ruim da empresa.

Se o inquilino, em um contrato de locação por prazo indeterminado, garante ao proprietário que permanecerá no imóvel por mais de um ano, mas, decorridos 30 dias, efetiva notificação para a denúncia vazia da locação, estará contrariando a boa-fé objetiva em decorrência do venire contra factum proprium. Nessa situação, o titular de um direito (inquilino) manifesta a intenção de não exercer seu direito de resilição, mas o exerce.

É com base no venire contra factum proprium que Teresa Ancona Lopes (2001, p. 139) defende a tese de que o consumidor de cigarros, que, “no uso da autonomia da vontade compra cigarros (atividade lícita e produto lícito) e mantém esse hábito por muitos anos (hábito lícito)” não pode, contrariando a boa-fé, reclamar por eventuais doenças e danos causados pelo tabaco.

Instituto análogo, mas não idêntico ao estudado, que representa verdadeiro corolário do venire contra factum proprium é a supressio. Asupressio é a situação do direito que, não tendo sido exercido por dete4rminado lapso de tempo, não mais poderá sê-lo, se contrariar a boa-fé.

Menezes Cordeiro (2001, p. 810) afirma que a doutrina muito discute se a supressio teria forma autônoma ou seria uma espécie de venire contra factum proprium. Chega-se à conclusão de sua possibilidade de autonomia em razão de o decurso de tempo, elemento essencial asupressio, não fazer parte da venire, nos exatos termos das lições de Bender. Por fim, o autor afirma que não há unanimidade dentre os doutrinadores alemães da matéria.

O art. 330 do Código Civil de 2002 é um claro exemplo de supressio. Dispõe o artigo em questão:

“Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.”

Como explica Judith Martins-Costa (2003, p. 315), em comentário ao art. 330, a confiança encontra particular e concreta eficácia jurídica como fundamento de um conjunto de regras que permitem, de um lado, a observância do pactuado e, de outro, s coibição da deslealdade, nesta hipótese possuindo eficácia limitadora do exercício de direitos subjetivos e formativos justamente para coibir a contradição desleal.

O Código Civil adota de maneira evidente a supressio, demonstrando que a boa-fé prevalece sobre o princípio da obrigatoriedade dos contratos. Isso porque a atitude das partes tem mais força que o texto do contrato. O advérbio reiteradamente é essencial para que se verifique a aplicação do art. 330 em decorrência do não-exercício da posição contratual. O decurso do tempo é que gera a expectativa de que não poderá ser frustrada.

Evidentemente que a noção de reiteração deverá ser decidida pelo juiz na análise do caso concreto, de acordo com as suas peculiaridades. O Código Civil de 2002 opta, mais uma vez, por não estabelecer uma norma fechada, mas um tipo aberto a ser preenchido na solução do caso sub judice.

Exemplificamos, ainda, com o caso de o inquilino que efetua o pagamento mensal de seu aluguel no dia 20, sendo que, pelo contrato, o pagamento deveria ocorrer no dia 5. O locador, durante certo lapso de tempo, não se insurge contra tal fato, apesar de o inquilino estar pagando em atraso. Neste caso, o decurso do tempo, sem a devida oposição do credor quer poderia perfeitamente exigir o pagamento de multa em decorrência da mora do devedor, significará a supressio. A situação de direito (pagamento no dia 5 em razão do contrato) fica suprimida, e não mais poderá ser exigida, valendo, portanto, a situação de fato (pagamento do aluguel no dia 20), sob pena de se contrariar a boa-fé. Em conclusão, o credor que deixou o tempo passar sem a devida oposição não terá direito a cobrar, por exemplo, a multa pelo pagamento em data diversa daquela prevista no contrato.

Poderá ser objeto de algum questionamento, se, no exemplo em tela, não estivermos diante de novação. A resposta é não, eis que a novação é a criação de uma nova obrigação para extinguir  uma antiga. São necessárias duas obrigações: a nova, que é avençada com o intuito de extinguir a velha. No caso da supressio, não há duas obrigações, mas apenas uma. Ademais, no exemplo, faltaria um requisito indispensável para a existência de novação, o animus novandi, ou seja, o intuito inequívoco das partes em extinguir a obrigação.

Por fim, verifica-se também a supressio na hipótese de determinado condômino de um prédio de apartamentos ter feito uma alteração na fachada, por exemplo, troca de esquadrias ou mesmo a aposição de uma grade de segurança, e tal alteração ter sido admitida por um longo lapso de tempo. O condomínio poderia, de imediato, exercer seu direito potestativo e determinar o desfazimento da alteração em questão. Entretanto, o tempo atua de maneira a inibir certas atitudes, sob pena de ferir-se a boa-fé objetiva.

Limitação da incidência da boa-fé de acordo com a redação do art. 422
Não têm sido poucas as críticas endereçadas ao art. 422 do Código Civil de 2002, que assim dispõe:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Uma das observações que se faz e, com razão, é que há insuficiência com relação às fases pré e pós-contratual. Pela dicção literal do artigo em comento, os contratantes deveriam agir de acordo com a boa-fé desde o momento da celebração até a execução do pacto. A boa-fé não seria exigida nas tratativas, nem após o cumprimento do contrato.

Antonio Junqueira de Azevedo (2000, p. 13) afirma que o contrato é um processo que há início, meio e fim e que uma das aplicações da boa-fé se faz na fase pré-contratual, em que há negociações preliminares e tratativas, e outra na fase pós-contratual. Entretanto, o Código Civil nada preceitua sobre o que está depois, nem sobre o que está antes.

Judith Martins-Costa (2003, p. 47) rebate a crítica em questão, afirmando que, por questões metodológicas, a responsabilidade pré-contratual não deveria figurar juntamente com o tratamento dos contratos e que sua disciplina é deduzida não apenas da concepção entre os aludidos art. 187 e 927, e ainda da norma de interpretação dos negócios jurídicos.

A I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal ocorrido nos dias 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do ministro Ruy Rosado de Aguiar, em seu enunciado de número 25, conclui que a redação do art. 422 do código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.

Tal posição foi reforçada na III Jornada de Direito Civil, também promovida pelo Conselho da Justiça Federal, ocorrida nos dias 1º a 3 de dezembro de 2004:

“Enunciado: a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.”

Formação do contrato - (Art. 427 a 435, CC)

Proposta
Conceito e obrigatoriedade
Antes da celebração do contrato, existe uma fase prévia chamada de tratativas, negociações preliminares ou fase de puntuação. Nessa fase pré-contratual as partes ajustam suas vontades no sentido de obter consenso. Obtido o consenso, o contrato se forma e passa a ser lei entre as partes.

A proposta, também chamada de oferta, é o convite para contratar. Para alguns, a proposta teria destinatário determinado e a oferta se dirigiria ao público em geral.

Trata-se de declaração de vontade dirigida a pessoa determinada ou determinável. Deverá conter todos os elementos suficientes para que, em havendo a concordância do oblato, forme-se o contrato. Se determinada pessoa diz que vai vender seu carro, mas não informa o preço, não estamos diante de uma proposta, mas de mera propaganda.

O que diferencia a proposta da simples propaganda é que esta não encerra todos os elementos necessários para o tipo contratual. Nesse sentido, a oferta ao público equivale à proposta, se esta permitir ao destinatário conhecer as regras e as condições do futuro contrato a ser firmado com a aceitação (art. 429, CC). Então se determinada construtora distribui nas ruas folhetos com detalhes do apartamento a ser vendido, mas não coloca o preço e as formas de pagamento, estamos diante de propaganda e não de oferta. Será oferta quando um grande magazine oferece latas de óleo a R$ 1,00 a unidade.

A oferta ao público poderá ser revogada, desde que a revogação se dê pela mesma forma em que a oferta foi realizada e que a proposta ressalve tal faculdade (art. 429, parágrafo único, CC). A oferta poroutdoor deve ser revogada por outdoor. Da mesma forma que a oferta em revista deve ser revogada por publicação em revista.

A proposta também é conhecida como policitação ou oblação. Em razão dessa sinonímia, o proponente também é chamado de policitante e o destinatário da proposta é chamado de oblato.

A proposta é ato unilateral do proponente e se trata de declaração receptícia de vontades, pois só produz efeitos após chegar ao conhecimento do oblato.

A proposta obriga o proponente. Isso porque a declaração de vontade cria justa expectativa de contratar na figura do oblato (art. 427, CC). Entretanto, em situações excepcionais, a proposta não obriga:

·                     Se o texto dela informar que não se trata de proposta, mas de mera propaganda de um produto, com os dizeres “sujeita a confirmação”;
·                     Se o contrário resultar da natureza do negócio, como, por exemplo, se houver informação de que a declaração está sujeita a confirmação, ou vinculada a determinada quantidade de mercadorias no estoque;
·                     Em razão das circunstâncias do caso que são aquelas previstas no art. 428 do código Civil.

O policitante que faz a proposta fica a ela vinculado. Se, depois, simplesmente se arrepende, pagará ao oblato indenização por perdas e danos, que incluem eventuais despesas que o último tenha tido durante as tratativas. Trata-se de responsabilidade pré-contratual e, portanto, aquiliana (art. 186, CC).

Perda da força obrigatória
Em determinadas circunstâncias, a proposta não terá força obrigatória. Para a compreensão das hipóteses em questão, é necessária a diferenciação da proposta feita entre presentes daquela feita entre ausentes.

Se a proposta é feita, sem prazo, para pessoa presente, ou seja, quando o oblato tem imediata ciência, logo que formulada, a sua aceitação deve ser imediata. Se não, a proposta perde a força obrigatória (art. 428, I, CC). Proposta a pessoa presente não significa a presença física do policitante e oblato no mesmo recinto. Se a proposta é feita por telefone ou mesmo pela Internet (desde que as partes estejam se utilizando de recursos, tais como menseger), a proposta é considerada entre presentes e o oblato deve aceita-la de imediato, sob pena de perda da força vinculante. Caso a proposta entre presentes seja feita com prazo, somente após seu término ela deixa de ter força vinculante.

A proposta sem prazo, se entre presentes, perde a força vinculante se decorrido tempo suficiente para a resposta chegar ao conhecimento do proponente (art. 428, II, CC). Imaginemos o exemplo da proposta formulada por carta para um destinatário que resida na mesma cidade que o proponente. Supondo-se que a proposta chegue no prazo de 3 (três) dias e que a resposta com a possível aceitação demore outros três dias, a força obrigatória será de seis dias. Nessa hipótese, encontramos a proposta por Internet via e-mail.

A proposta entre ausentes com prazo determinado perde sua força obrigatória se o oblato não expedir a aceitação no prazo em questão (art. 428, III, CC). Assim, se o policitante envia proposta por carta ao oblato informando que esta terá validade de dez dias, caberá ao último enviar sua aceitação (postagem da carta pelo correio ou envio de e-mail) dentro desse prazo.

Por fim, a proposta perde sua força obrigatória se a retratação chegar antes ou simultaneamente à retratação do proponente (art. 428, IV, CC). Se o proponente se arrepende da proposta e, junto, ou antes, dela chega ao conhecimento do oblato a retratação, não poderá o oblato reclamar, pois sequer formou-se em seu espírito a vontade de contratar. Não houve criação de expectativas pelo policitante. É o caso de proposta enviada pelo correio e a retratação feita por fac-símile, antes mesmo de primeira chegar ao conhecimento do oblato.

Aceitação
A aceitação é a declaração do oblato necessária para a formação do contrato. Deve-se dar no prazo concedido pelo policitante e de maneira a aderir integralmente à proposta efetuada. Também é a declaração de vontade que só produz efeitos se chegar ao conhecimento do proponente.

Se a aceitação chegar tardiamente ao conhecimento do proponente, em razão de circunstância imprevista, deve este avisar imediatamente o aceitante, sob pena de responder por perdas e danos (art. 430, CC). Aceitante é o oblato que já externou sua aceitação. Nesta hipótese, em razão do atraso, a proposta já perdeu a sua força obrigatória e o proponente não está obrigado a contratar. Como o aceitante não está ciente do imprevisto ocorrido, caberá ao proponente o dever de avisá-lo do ocorrido, sob pena de pagar eventuais prejuízos sofridos pelo primeiro. É decorrência direta da boa-fé objetiva em sua fase pré-contratual, a chamada culpa in contrahendo.

Assim, se a aceitação demora a chegar ao policitante em razão de greve nos correios, cabe a ele avisar, quando do recebimento tardio, que a sua proposta perdeu a força obrigatória.

A aceitação que não se dá de maneira integral, isto é, com mudanças, restrições ou acréscimos, bem como aquela formulada fora do prazo, significa nova proposta, também chamada de contraproposta (art. 431, CC). O oblato assume posição de proponente e vice-versa. Tal atitude retira da proposta original sua força vinculante.

A aceitação pode ser tácita ou expressa. Será expressa se o oblato declarar por meio de palavra escrita ou oral, bem como por gestos sua aceitação. Será tácita se o oblato praticar atos compatíveis com a aceitação. Assim, o hóspede do hotel que consome o produto contido no frigobar de seu quarto, cujo preço está escrito em cardápio ali localizado, realiza a aceitação tácita à proposta de compra e venda.

Para certos negócios, não há o costume de aceitação expressa ou o proponente dispensa o oblato de fazê-la. Nesses casos, caberá ao oblato a recusa, sob pena de, não o fazendo a tempo, entender-se concluído o contrato (art. 432, CC). É o caso de fornecimento periódico de verduras a um restaurante por determinado preço. A cada aumento de preço pretendido pelo fornecedor, ou seja, alteração das condições de contratar, deve este informar ao restaurante que, se não concordar com os novos preços, deve manifestar expressamente sua vontade.

Este aumento nos preços das verduras significa nova proposta para contratar, já que se altera elemento fundamental da compra e venda. E se o restaurante não afirmar expressamente sua recusa em contratar, deverá pagar o novo preço da mercadoria, pois a lei reputa concluído o contrato.

Momento e lugar da formação do contrato
Se a proposta for feita à pessoa presente, sua formação ocorre no momento em que a proposta for aceita integralmente pelo oblato.

Entretanto, no contrato entre pessoas ausentes, a questão não é tão simples. Duas são as teorias que explicam o momento da formação do contrato.

·         Teoria da Cognição: o contrato se forma no momento em que o policitante tem conhecimento da aceitação pelo oblato.

·         Teoria da Agnição: o contrato se forma com a aceitação do oblato. Com base na teoria da agnição, podemos imaginar que o contrato entre pessoas ausentes poderia formar-se em três momentos distintos:
a)         quando o oblato declara ter aceito a proposta formulada – teoria da agnição na subteoria da declaração;
b)        quando o oblato expede a resposta para o proponente com sua aceitação, ou seja, envia o e-mail ou coloca a carta no correio com a concordância - teoria da agnição na subteoria da expedição;
c)         quando o policitante recebe em suas mãos a aceitação do oblato – teoria da agnição na subteoria da recepção.

O Código brasileiro optou por adotar a teoria da agnição na subteoria da expedição e, por isso, no Brasil, o contrato entre ausentes se forma quando o oblato expede sua aceitação (art. 434, CC).

Entretanto, em determinadas hipóteses, mesmo após a expedição da aceitação, o contrato não se forma.

O contrato não se forma se, após a expedição da aceitação, mas antes ou simultaneamente à sua chegada às mãos do policitante, o oblato envia retratação (art. 434, I, e 433, CC). Se a aceitação segue pelo correio e o oblato envia um telegrama se retratando, que chega ao policitante antes mesmo da proposta, o contrato não se formou.

Também não se forma com a simples expedição, se o proponente se comprometeu a esperar a resposta (art. 434, II, CC), pois, neste caso, as partes afastaram a teoria da expedição e adotaram a da recepção.

Por fim, o contrato não se forma se a aceitação chegar fora do prazo convencionado (art. 434, III, CC). Se o proponente deu prazo para que a aceitação fosse recebida, depois de tal prazo o contrato sequer existe, pois não houve acordo de vontades.

O lugar de formação do contrato terá fundamental importância para a verificação da legislação aplicável em caso de conflitos da norma no espaço, ou seja, matéria de direito internacional.

Assim, o contrato reputa-se celebrado no lugar em que foi proposto (art. 435, CC). Se a proposta as do Brasil para qualquer país do mundo, a lei reputa que o lugar de sua formação é o Brasil.

A Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (LINDIB) vem ao encontro do dispositivo em estudo, pois afirma que a obrigação resultante de contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente (LINDIB art. 9º, § 2º). 

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